Jabuticaba: de vinho a farinha, projeto vai aprimorar produção de derivados
Da polpa à casca, fruto nativo do Brasil tem potencial para novos mercados
Ações de pesquisa e apoio à inovação coordenadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) vão aprimorar processos relacionados à produção de derivados de jabuticaba. Neste início de projeto, o foco será promover a inclusão socioprodutiva de agricultores familiares camponeses do agreste alagoano, especialmente por meio do aprimoramento do processo de elaboração do fermentado de jabuticaba.
Os resultados iniciais previstos são:
- Fermentado gaseificado de jabuticaba, elaborado pelo método tradicionalmente utilizado para a produção de vinhos espumantes;
- Um isolado estável de leveduras com potencial biotecnológico;
- Farinha obtida do resíduo do processamento do fermentado; e
- Uma barrinha crocante à base dessa farinha com a adição de frutas da região.
De acordo com a Embrapa, também estão previstos estudos sensoriais junto aos consumidores e capacitações para os produtores em tecnologia de processamento dos fermentados, boas práticas de elaboração das bebidas, adequação à legislação vigente de fermentados de frutas, construção do plano de negócios, gestão de cooperativas e marketing.
O projeto de pesquisa “Inclusão socioprodutiva de agricultores familiares camponeses do agreste alagoano por meio do aprimoramento da produção de fermentados de jabuticaba e do isolamento de leveduras dos frutos” é desenvolvido em conjunto com a Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa do Estado de Alagoas (Coopcam), criada em 2011. A coordenação é da Embrapa Alimentos e Territórios, em colaboração com Embrapa Uva e Vinho (RS), Embrapa Agroindústria de Alimentos (RJ), Embrapa Semiárido (PE) e Embrapa Meio Ambiente (SP).
Nativa do Brasil, a jabuticaba vem atraindo a atenção da comunidade científica e de consumidores por suas propriedades e compostos bioativos, que têm função antioxidante. Tudo nela pode ser aproveitado, desde a casca até as sementes, ricas em fibras alimentares e nutrientes, como antocianinas, vitaminas do complexo B e C, potássio, fósforo, ferro e carboidrato. O consumo pode ser in natura ou na forma processada em geleias, sorvetes, bolos e licores. Ou mesmo como componente de bebidas probióticas.
Região alagoana tem tradição no preparo do fermentado de jabuticaba
Encontrada em todas as regiões do país, especialmente no Centro-Oeste e no Sudeste, a jabuticaba é uma fruta altamente perecível devido ao alto teor de água e de açúcares em sua polpa. A região da Serra das Pias, Serra Bonita e Monte Alegre, no município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, onde está localizada a Coopcam, destaca-se pela grande presença de jabuticabeiras. O município abriga a variedade “cabeluda”, até então encontrada apenas em algumas localidades do Nordeste. A produção dos frutos ocorre de março a maio, considerada a maior safra, e entre novembro a janeiro, na safrinha.
No final da década de 1970, famílias residentes na Serra das Pias iniciaram a produção artesanal do fermentado de jabuticaba. Segundo os moradores, a quantidade produzida era pequena, destinada ao consumo próprio, principalmente em festas familiares. Com a Coopcam, o sistema de produção foi organizado para processar produtos dos agricultores da região, que passaram a produzir polpas de frutas, doces, geleias, além da bebida fermentada, o principal produto comercializado. Entretanto, apenas 20% da produção de jabuticaba é beneficiada. Os agricultores familiares também comercializam outras frutas, hortaliças e sementes, produzidas de forma agroecológica.
Os cooperados receberam capacitação em 2019, com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Alagoas (Sebrae), da Embrapa, da Secretaria de Desenvolvimento e Turismo de Alagoas (Sedetur) e da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A contribuição de instituições de fomento e pesquisa permitiu diversificar os derivados da jabuticaba, aprimorar a qualidade do fermentado e buscar adequar-se às normas brasileiras de produção e comercialização de bebidas, de acordo com estudos da Ufal. Estratégias de divulgação também têm despertado o interesse turístico para a região produtora.
Nas serras de Palmeira dos Índios não existe plantação e cultivo comercial da fruta. São mais de 650 jabuticabeiras que surgiram pela disseminação das sementes nas propriedades dos agricultores. Assim, para uma produção sustentável de frutos de jabuticaba, é fundamental conhecer as variedades presentes na região e seus usos atuais e potenciais, o que inclui a identificação de plantas matrizes (aquelas identificadas pelos produtores como de melhor produção e qualidade do fruto) visando à conservação dos recursos genéticos e a consequente ampliação da produção. Esses aspectos irão permitir atingir novos mercados e consumidores.
Em 2020, representantes da Cooperativa solicitaram à Embrapa Alimentos e Territórios a elaboração de estudos para a melhoria da tecnologia de elaboração do fermentado. A jabuticaba possui grande concentração de açúcares, que provoca rápida fermentação após a colheita, exigindo a implementação de técnicas de beneficiamento eficientes, segundo os pesquisadores. Outros desafios incluem a organização do processo produtivo, a adequação de maquinários, do espaço físico e dos materiais usados para envasamento, e a rotulagem dos produtos de forma a atender às exigências do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
“Apoio às atividades de elaboração de fermentados, leveduras e aproveitamento dos resíduos da fermentação” — José Roberto Correia
“Para que a Coopcam tenha a dimensão de todo o processo de produção, será realizada a identificação e caracterização dos sistemas agrícolas envolvidos na produção de derivados de jabuticaba, incluindo a identificação, em especial, das variedades localmente denominadas de sabará e cabeluda”, explica o pesquisador João Roberto Correia, da Embrapa. “Essas informações estarão articuladas com a atividade de caracterização química das frutas e seus produtos para melhor qualificá-los, servindo de apoio às atividades de elaboração de fermentados, leveduras e aproveitamento dos resíduos da fermentação”, complementa.
Trabalhos desenvolvidos pela Embrapa Uva e Vinho vão ajudar a qualificar a produção de subprodutos fermentados de jabuticaba. As atividades de pesquisa abrangem desde a seleção de microrganismos, como as leveduras nativas da região, até a adequação dos produtos à legislação vigente.
Referência na seleção de microrganismos para a elaboração do vinho, o pesquisador Gildo Almeida da Silva vai coletar jabuticabas em Palmeira dos Índios para isolamento de microrganismos, processo semelhante ao realizado nas uvas. “Temos a expectativa de auxiliar na melhoria da qualidade do fermentado a partir do trabalho que vamos realizar de coletar, caracterizar, identificar, selecionar e disponibilizar uma linhagem adequada ao processo”, informa.
Já o enólogo e analista da Embrapa João Carlos Taffarel irá atuar diretamente na qualificação da produção, tanto no desenvolvimento de tecnologias para o processamento dos fermentados como na adequação da agroindústria para a finalidade de elaboração de fermentados, além de apoiar a capacitação dos produtores e técnicos para implementar melhorias no processo e na adequação às normas vigentes.
Expedições para intercâmbio de experiências
Com o objetivo de trocar experiências entre os produtores de jabuticaba de Alagoas e Goiás, já foram realizadas duas expedições a Hidrolândia (GO), em abril de 2022 e em fevereiro de 2023. Além da equipe técnica e de representantes da Coopam, pesquisadores, agentes e gestores públicos participaram das atividades, que incluíram visitas a produtores locais e à Vinícola Jabuticabal, maior produtora de jabuticabas do país e referência na produção de bebidas fermentadas da fruta.
As ações de intercâmbio e capacitação também estão inseridas no programa “Segurança alimentar e nutricional, e geração de renda para agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do semiárido brasileiro”, no âmbito do Projeto Dom Hélder Câmara, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e cofinanciado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida).
Organizadas pelas instituições parceiras, em conjunto com a Embrapa, as visitas permitiram ao grupo de cooperados trocarem diversas informações sobre o processo produtivo com os produtores de Hidrolândia, que produzem derivados da jabuticaba para o mercado goiano, além de compartilharem experiências referentes ao modelo de organização social. Em abril de 2022, a expedição organizada pelo Sebrae contou com integrantes da Embrapa, Coopcam, Emater Alagoas, Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado (Sedetur), Emater Goiás e Instituto Federal Goiano.
Na Vinícola Jabuticabal, o proprietário Paulo Antônio Silva abordou a produção da cultura, o ciclo reprodutivo, o processo de armazenamento e os desafios enfrentados, como o controle de pragas e do teor de acidez. Nas outras propriedades visitadas, os membros da Coopcam puderam trocar informações sobre processo agroindustrial, comercialização e cultivo consorciado de plantas. Os cooperados também apresentaram sua forma de organização aos produtores de Hidrolândia.
Durante o segundo intercâmbio, em 2023, foi organizado um seminário com produtores e beneficiadores de derivados de jabuticaba, além de visitas a unidades produtivas. O evento teve apoio do Sebrae, da Secretaria do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Sedics) e da Superintendência Federal do Ministério da Agricultura e Pecuária de Alagoas.
José Roberto Correia lembra que a jabuticaba é uma fruta muito perecível e, por isso, o tempo entre a colheita e o processamento é muito curto. “No diálogo entre os dois grupos ficou claro que em Palmeira dos Índios esse tempo é um pouco maior, permitindo guardar a jabuticaba por um período mais longo. Isso talvez ocorra pelas condições climáticas de Alagoas, região semiárida, que permitem ampliar o prazo de conservação dos produtos. Os produtores de Hidrolândia também ficaram impressionados com a variedade ainda indefinida existente no estado alagoano, chamada de cabeluda”, enfatiza o pesquisador.
Rede de colaboração
Um dos primeiros resultados das missões técnicas foi a construção de uma rede de colaboração entre a Coopcam e a Vinícola Jabuticabal, aproveitando as expertises tanto da cooperativa, no processo de associativismo e cooperativismo, quanto da Vinícola em relação a técnicas de produção do fermentado. Desde o ano passado, a vinícola vem prestando assessoria informal à cooperativa para a melhoria do processo de produção da bebida fermentada. Outro resultado foi a formalização, no início de fevereiro deste ano, da Associação dos Produtores de Jabuticaba de Hidrolândia, movimento fortalecido com a visita de 2022 e inspirado na organização dos agricultores alagoanos.
As discussões específicas sobre a experiência da vinícola com a regularização da produção e comercialização das bebidas fermentadas junto ao Mapa foram de grande contribuição para os produtores alagoanos. “Ficou clara a necessidade de se alterar a legislação, dadas as características próprias da jabuticaba, fruta com maior acidez, fator que dificulta o atendimento às normas em vigor estabelecidas pelo Ministério da Agricultura”, observa Rodolfo Oliveira, analista da Embrapa.
Na visão do líder do projeto, o intercâmbio de experiências também foi muito enriquecedor. “Os cooperados viram como funciona o processo de uma agroindústria que já está estabelecida, do ponto de vista da legislação e do controle de gestão, e puderam conhecer equipamentos e técnicas para o processamento e o aproveitamento de produtos”, conta Correia. “Para a equipe da cooperativa também foi importante conhecer outras perspectivas de produção de jabuticaba, principalmente ligadas ao turismo. Além disso, a Coopcam pôde apresentar sua forma de organização, o que inspirou os produtores de Hidrolândia a organizarem-se em uma associação”, ressalta.
“Um dos principais desafios dos produtores que trabalham com bebidas fermentadas de jabuticaba refere-se às exigências legais do teor de acidez” — José Roberto Correia
Outro desdobramento dessas visitas foi a discussão sobre a formação de uma rede nacional de produtores de fermentados de jabuticaba. A intenção é buscar diálogos para propor ajustes e adequações nas normas e regulamentos de produção da bebida. “Um dos principais desafios dos produtores que trabalham com bebidas fermentadas de jabuticaba refere-se às exigências legais do teor de acidez, já que a norma atual não se coaduna com a realidade da fruta. A luta dos produtores é conseguir modificar essa legislação”, aponta Correia. Para isso, é necessário ter subsídios técnicos que sirvam de base para o pedido de mudança da lei. O projeto de pesquisa coordenado pela Embrapa também irá levantar informações técnicas para subsidiar essas iniciativas dos produtores.
O presidente da Coopcam, José Hélio Pereira da Silva, acredita que o projeto representa um salto de qualidade no trabalho dos cooperados, principalmente porque vai dar legitimidade ao processo que vem sendo desenvolvido pelas famílias há várias gerações com a jabuticaba, o fermentado e os demais produtos derivados, permitindo, inclusive, expandir a atividade. “A levedura, por exemplo, é algo extremamente rico e que nós não tínhamos conhecimento desse potencial. E também o aproveitamento integral da jabuticaba”, avalia.
Para Pereira da Silva, as pesquisas vão ajudar não só os produtores de Alagoas, mas também vão abrir portas para outros produtores de jabuticaba do Brasil. “Esse projeto é de um protagonismo e de um valor imensurável para nós”, diz. “Nós vamos qualificar o que já estamos fazendo, melhorando cada vez mais”, explica o presidente da Coopcam. O presidente da cooperativa ainda considera que os resultados das pesquisas vão beneficiar, além dos agricultores, vários segmentos da sociedade, incluindo pesquisadores e representantes do governo, no sentido de contribuir para o avanço do conhecimento e para a superação das barreiras, tanto no processo produtivo quanto na legislação.